sexta-feira, 13 de novembro de 2009
Rosalva - Por Vera do Val
Rosalva surgiu na vila, lá na nascente do rio, ainda não tinha sete anos. Veio no tempo das águas, com jeito de caça acuada, apareceu do nada na porta do casebre de Inana em uma tarde em que a velha escaldava em febre. A aparição foi obra da mão de Deus, como Inana diria, mais tarde, contando a história.
A primeira coisa que impressionou a velha foi o perfume. A menina exalava um cheiro de flor, um perfume delicado que ia desenrolando no ar, tomando conta de tudo, entrando pelas frestas da maloca; parecia que um anjo estava passando por perto. Tinha olhos enormes e escuros, corpo mirrado e cabelos escorridos, meio esverdeados. Logo serviu de pau mandado, pegando as ervas curadoras guardadas no baú, preparando o chá e cuidando da velha. Depois se descobriu que melhor do que as ervas era aquele cheiro. Quando ela chegava perto a coisa era milagrosa. Envolvia de mansinho as pessoas e toda a dor ia se desvanecendo, a doença saindo em disparada e a calma brilhava no olho antes cheio de agonia.
De onde ela veio nunca se soube e a menina também não lembrava, mas isso não era questão que preocupasse aquela gente. A vida na vila era de surpresa e pouca pergunta, o povo se acostumara com o ir e vir dos viventes, o rio trazia e levava, alimentava e matava quando queria. Velho Nabor, mascate de passagem, disse que ela cheirava rosas, e lhe deu o nome da flor, que ninguém ali nunca tinha visto.
Rosalva foi crescendo nas artes, foi aprendendo com a velha o uso das ervas e as lides do dia, mas sempre meio casmurra, não dada à brincadeiras. O corpo espichando, tomando carnes e formas, dando para a curuminha, macambúzia e de riso difícil, um contorno mais suave e doce que destoava da cara amarrada e do olhar de bicho escondido. O cheiro e sua cura traziam gente de longe para aquelas terras esquecidas de Deus, onde a dor e o conformar era o pão cotidiano. Ela atendia a todos com uma paciência infinita; não havia aflito que não deixasse ali sua mazela e saísse a bendizer e a louvá-la.
Todo começo de noite a menina ia para o rio se afrescar nas margens. Quando o lusco-fusco embaralhava as coisas ela se aproveitava dessa hora silenciosa que a escondia do mundo. Levantava a saia e entrava no rio, devagarinho e de olhos fechados, se deleitando quando a água morna lhe lambia as partes, carícia doce dos dedos d`água, e ali se perdia, no vai e vem do Negro. Era quando seus cabelos se tornavam mais verdes e o perfume mais forte. Ela arengava baixinho um pequeno gemido e o rio, sinuoso, ia lhe respondendo. Nisso ficavam os dois embebidos um bom tempo até as estrelas espiarem e o céu se confundir com as águas
Quando estava lá pelos seus vinte anos, ainda não conhecia homem. O rio era o amante fiel, e estava sempre ali esperando. Respondia-lhe o desejo e não lhe cobrava presente.
Por esse tempo apareceu na vila um latagão que tinha por nome Gerôncio, vinha de Bem Querer, um sítio metido lá pelo confim do mato, perdido no verde e na história das gentes. Rosalva sentiu os olhos dele como nunca antes havia sentido olhar de vivente algum e Gerôncio estremeceu com a donzela. Mexeu nos seus brios aquela moça de olhos baixos e perfume de mistério que todos diziam meio lesa, amasiada com o rio, que curava as pessoas e entendia de ervas como ninguém.
Nessa época Inana morreu, picada de caranguejeira, cujo veneno nem as ervas nem as rezas e nem os esforços de Rosalva e seu perfume milagreiro deram conta de vencer. A moça ficou desguaritada e Gerôncio foi rodeando. Conversa vai, conversa vem, acabou por levá-la desprevenida para a rede e da donzelice só restou a saudade. Depois da noite de amor ele quedou seduzido pela macieza dela, pelo murmúrio tal qual o marulhar das águas e resolveu levá-la consigo de volta para o Bem Querer. Juntaram depressa os trens que eram poucos e parcos e lá se foram os dois para o meio do mato. Ela à procura do paraíso, que tinha gostado de homem, ele na volta ao seu lugar; agora carregando mulher.
Hora de botar juízo e tocar a vida.
Todos contaram depois, que quando da partida de Rosalva o Negro turvou, torvelinhou e rugiu o dia todo, a peixarada sumiu assustada e até pescador muito macho se recolheu precavido.
Casinha pintada de branco, umas criações no terreiro, a vida correndo bonita, mas Rosalva, com o passar do tempo, começou a mostrar uma tristeza danada, um fastio de dar pena. Sentia falta do rio, do ciciar dele no corpo, dedos que Gerôncio não tinha tão leves e afoitos. Começou a estiolar devagarinho, o cheiro sumira, os cabelos perderam o verde, ela bem que se esforçava, mas vivia pelos cantos, com olho de peixe morto. Filho, Deus não mandava e por mais que pelejassem era debalde. Parecia que ela tinha as entranhas secas. À bem da verdade o marido até plantava as sementes, diária e vigorosamente, mas a coisa não germinava.
Lá se passaram uns cinco anos, ela dada a mais murchar a cada dia; ele dado a mais viajar pelas vilas, procurando o campo fértil que a vida tinha lhe negado. Uma bela manhã ele voltou mais soturno e quando ela se apercebeu já estava arrumando o alforje, botando dentro todos seus trastes e dizendo que o tempo dos dois tinha acabado; ele se ia pra outras matas e ela, se quisesse ficasse, se não, que voltasse para vila, para o rio e para suas rezas. Ele estava cansado, era homem de verdade, não queria disputar com Boto, ela que se arrumasse.
Rosalva sentiu que a hora era chegada. Sem um pio, tomou o rumo da vila e chegou lá como quando era menina, só com a roupa do corpo, mas com a saudade no peito.
Ressabiada, foi logo para a margem e foi ela se aproximar, sem aviso, o cheiro voltou fragrante, o Negro rodopiou forte atraindo as pessoas que vieram todas se postar na beira para ver aquilo. Ela se alumiou como um sol, o rio coruscava, águas cantando boas vindas, ela murmurando baixinho, uma algaravia estranha, conversa de Iara e de peixe. Todos viram, estatelados, os cabelos dela cintilarem verdes, enquanto ia entrando rio adentro, um fogo nos olhos, um gemido no peito, se deixando levar pelo negrume sedoso das águas, o rio rindo com ela, a malinando toda, até que, de olhos fechados e um sorriso na boca, ela desapareceu no escuro das funduras e da noite que vinha chegando.
***Conto do livro “Histórias do Rio Negro”, premiado em primeiro lugar na primeira fase do Prêmio Jabuti 2008.
Vera do Val é paulista, morando na Amazônia. Publicou - "Rede de intrigas", 2006, (Editora Escala); "O imaginário da floresta" e Historias do rio Negro", 2007 (Editora Martins Fontes); "Do nada ao infinito" (em parceira com Marcelo D`Ávila) e "O filho do marimbondo", 2007 (Dulcinéia Catadora). Para 2008 no prelo "Criação do mundo e outras histórias" e "Histórias de bichos brasileiros" ( Editora Martins Fontes).
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Um comentário:
http://tbouzan.blogspot.com/ pode dar um olhada bj
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