domingo, 27 de setembro de 2009

Onde nadam os peixes encantados..

Por Ana Maria Gonçalves...autora do livro Um defeito de Cor.






(primeiro capítulo de Ao lado e à margem do que sentes por mim)



Aos dois anos de idade soltei a mão de minha mãe e atirei-me ao lago. Se puxasse um pouco pela memória talvez soubesse precisar uma data, uma referência de mês ou estação do ano, mas não me convém. Importa-me muito mais o ato, talvez o meu primeiro ato de libertação. Ou então, aquele que me prendeu definitivamente o destino ao destino das águas, na feitura de lagos maiores, de rios e, finalmente, de mares.

Durante anos esta história esteve esquecida, guardada em algum canto esperando seu lugar no fluxo das memórias que, não sendo recorrentes, são especiais. Fazem parte daquele tipo de lembrança que pode esmaecer e até perder todas as cores; mas basta um leve pousar de olhos sobre um fragmento, um cheiro captado no vôo de um vento vindo de longe, um gosto antigo salivando na boca, e ela, a tal memória, revive. E me preenche de tal maneira como se nunca tivesse me abandonado, como se não fosse tempo passado, como se estivesse sempre acabando de acontecer.

É esta a sensação que me acomete agora, trinta anos depois, de frente para este mar: a de nunca ter tirado os pés de dentro da água do lago para o qual me atirei aos dois anos de idade, aproveitando o único momento de descuido de minha mãe.

Estive quase toda a manhã pensando em como as coisas importantes que nos acontecem dependem apenas de um derradeiro segundo, nem mais nem menos. É como se a vida inteira fosse se acumulando naquele exíguo espaço de existência temporal, equilibrando-se perigosamente às margens de um precipício, à espera de uma atitude corajosa ou de um elemento desencadeador, para então se resolver inteira. Ela, a vida, anseia pelo nosso momento de descuido para acontecer simplesmente, sem as amarras e os cuidados com que a mantemos em permanente vigilância.

Seja sob as bênçãos daquele deus que, mesmo quando não invocado, está sempre ao serviço dos loucos, dos apaixonados e das crianças. Ou sob as asas negras do anjo dos arrependimentos. E no meio da vida, no meio do salto, da fuga ou da corrida desenfreada, de um lado e do outro do precipício, estamos nós, a quem raramente é permitido saber com antecipação quem ou o quê nos rege.

Se o nosso próximo instante será fruto de agir ou de sofrer uma ação: a vida é sempre um passo certo ou um golpe do destino, quase não há meio termo. É nisto que penso enquanto o sol a pino projeta minha imagem vertical na areia quente e me traz de volta a miragem do lago.

Quando criança, não sei quantas vezes pedi que me contassem a história do lago. Na verdade todos o chamavam de prainha, Prainha do Niterói, a centenas de quilômetros do mar e formada por um braço do Rio Misericórdia, onde há muito tempo funcionou a draga de João Daiara.

Ibiá era apenas um vilarejo, lugar de passagem e de pouso para os tropeiros que, em ruidosas comitivas, serpenteavam centenas de quilômetros entre as montanhas de Minas Gerais, transportando o gado para as regiões de abate mais ao sul do país. No amontoado de casinhas de pau-a-pique eles alugavam redes para uma noite de maior conforto, conseguiam uma tina de água para um banho quente, faziam uma refeição mais reforçada, cuidavam do gado doente ou cansado e planejavam o restante da viagem. Aos poucos, um e outro tropeiro se desgarrava e ficava por ali, onde tudo ainda estava por fazer, e acabaram surgindo as moradias e as vendinhas com as mercadorias a granel: arroz, feijão, café, milho, farinha, carne salgada, fumo de corda, cachaça.

Ainda menina de sete ou oito anos, depois de ouvir esta história da boca de minha mãe, meu pai, de tios ou avós, eu me transportava em pensamento para a beira do rio. Ao redor de duas ou três fogueiras, acocorados sobre os calcanhares, os tropeiros conversavam e tocavam violão, com as vozes ruidosas ensandecidas pelo brilho da lua cheia e pelos goles de cachaça.

Já eram bastante familiares as figuras que minha imaginação ia tecendo inspirada pelas histórias que contavam sobre paragens distantes, lugares de onde tinham vindo ou para onde estavam indo. Mas para que eu não os ouvisse direito sussurravam sobre mulheres, queixando saudades, dores de amor, tristezas e alegrias equilibradas na corda tesa da viola. Suas canções quase sempre lamentavam os companheiros mortos durante as viagens, os amores abandonados ou impossíveis, as paixões comprometidas, os encontros furtivos. O tipo de amor que pode enlouquecer um homem solitário, como João Daiara.

Antes o chamavam de João da Draga, por causa do maquinário que montara no distante rancho do Niterói. Ele aspirava o leito do rio e abastecia de areia as construções erguidas no vilarejo, que crescia seguindo os tortuosos avanços do Rio Misericórdia. Naquele tempo, a Prainha não passava de um local onde o rio se alargava um pouco mais e tinha em sua margem a areia ruim de vender, quase um cascalho que não seria aproveitado antes de muito bem peneirado e escolhido. Até o dia em que João enlouqueceu:

- É da Iara! É da Iara!

A grande máquina trabalhava dia e noite, cuspindo dunas que João Daiara espalhava incansavelmente pelas margens do rio, negando-se a vender um único grão de areia sequer e vigiando para que ninguém os tocasse. A draga cavou a lenda de um lago sem fundo, onde João Daiara ainda vive depois de ter sido enfeitiçado pela iara que, numa noite de lua cheia, viu surgir no meio do rio e pedir uma praia para descansar. Durante muito tempo depois que João Daiara desapareceu sem deixar vestígios, a draga funcionou sozinha. Desordenada e autoritária, dividiu o rio Misericórdia, que seguiu novo curso bandeando-se para o outro lado, formando uma nova margem bem no meio e deixando do lado de cá, o lago. Hoje, o curso desviado do Misericórdia e a Prainha apenas se unem nas grandes enchentes. No resto dos dias ficam para sempre separados pela ilhota, coberta de densa vegetação.

Muito antes daquele meu primeiro contato com o lago, ele já tinha perdido um pouco de sua memória mágica, e quase não se falava da história de João e sua Iara. Tornara-se um local de lazer onde, aos domingos, famílias faziam piquenique e crianças construíam castelos na areia, sempre advertidas de que deveriam se manter fora do lago sem fundo. Lá viveria um monstro, uma maldição que endoidecia quem se atrevesse a entrar nas águas. E aquele pedaço de rio foi ficando esquecido, abandonado, nem mesmo servindo de cenário para os moleques que procuravam os lugares de nadar escondido. Era calmo demais.

Não me lembro de terem voltado comigo ao lago. Talvez minha mãe tenha preferido não se arriscar a mais um momento de distração e povoado meu universo infantil com novas descobertas. Aos domingos, depois do almoço, quando toda a família se reunia na casa de minha avó, eu me dedicava às incursões pelo enorme quintal. A casa lá na frente do terreno, os primos e as outras crianças entretidos com brincadeiras que nem sempre me interessavam. A tarde preguiçosa escorrendo por entre as folhas das parreiras transformadas em caramanchão, onde os adultos conversavam. Eu fugia para os meus cantos preferidos, para brincar sozinha ou com amigos invisíveis. “Menina estranha”, às vezes diziam, mas me deixavam ficar pelo quintal, observando a atrapalhação de patos e galinhas, o cachorro cavando a sombra, o vai-e-vem das roseiras nas costas das formigas. De companhia eu tinha o murmurejar de águas, doce, constante, monótono, o Misericórdia correndo tranqüilo e me chamando para o outro lado da cerca.

Durante alguns dias eu apenas o observei, através de uma janela que abri por entre folhagens que recobriam a cerca de arame já bastante enferrujado. As águas barrentas carregavam restos de chuva de algum lugar mais acima, instigando-me a saber de onde vinham e para onde iam. Às vezes eu mesma jogava um pedaço de madeira, uma flor, uma ramada de árvore que não afundasse, e corria paralela à cerca até o limite com o quintal vizinho. Apostando comigo mesma, queria saber se o objeto seguiria rio abaixo ou sumiria nas águas, dragado pelo miolo de de seu próprio redemoinho.

Um dia, atravessei a cerca. Do lado de lá o rio era ainda mais fascinante, um grande animal a rastejar, poderoso, soberano, arrastando consigo tudo que tentava atrapalhar a caminhada. Fui perdendo o medo e seguindo-o até cada vez mais longe, pela estreita trilha formada entre uma extensa fileira de bambus e o solo úmido e musgoso da sua margem; a qualquer hora do dia, sempre à sombra. O caminho à frente se fechava, obrigando-me a entrar em meio ao bambuzal, sentindo que me afastava do rio. Pensei em voltar, com medo de me perder, mas ainda podia ouvi-lo seguindo um pouco mais adiante. Olhando através de uma pequena abertura entre os bambus, eu o vi. O lago, exatamente como eu me lembrava dele naquela tarde em que, no colo de minha mãe, eu o olhava por sobre os ombros dela. Ela se afastando em passos largos e nervosos do único lugar onde eu queria ter estado até então.

Não havia mais sinal de pic-nics, nem de castelos de areia, nem das conversas em domingos de sol. Apenas o completo abandono de um amontoado de histórias, lembranças, passagens e pessoas. Um lugar antigo, longe de ser bonito. A areia grossa e clara coberta por uma vegetação rasteira que havia muito tempo não experimentava passos, apesar de ainda estar impregnada de pegadas. É claro que na época eu não tive esta percepção, e acredito que meu fascínio foi pela vida por acontecer, a lentidão, a espera, os vazios, as descobertas possíveis. A prontidão com que aquele lugar obedecia ao meu comando de brincar de "-Estátua!". E paralisávamos os dois a nos observar, ele se fazendo presente nos espaçados estalares de gravetos, no vôo enlouquecido dos insetos. Na timidez com que o sol espreitava por entre a densa folhagem, fazendo daquele um lugar perfeito para minha existência de menina estranha.

Representávamos muito bem nosso papel, eu e aquela estática natureza, às vezes por horas seguidas debruçadas uma sobre a outra. Eu e as árvores mirando o lago parado e ele nos espelhando de volta. Um eco do nada, uma antecipação de algo importante que estava para acontecer e que íamos adiando. Às vezes por puro medo de não saber o quê, ou por querer prolongar a sensação de anti-clímax frente a uma revelação grandiosa, que seria só nossa. Um segredo terrível que nos libertaria para sempre da condição de diferentes, do estranhamento a que estávamos tão acostumados.

Pequenos fragmentos de vida às vezes vinham à tona. Minúsculos peixes e anfíbios que nadavam pela margem, esperando que um fruto se despregasse das árvores e afundasse nas águas, com o peso e o estardalhaço de mil toneladas. O choque deslocando gotas que saltavam no ar e caíam de volta na lisa superfície do lago, liberando ondas que se propagavam e deformavam as sombras das árvores ali descansadas. Os troncos eram transformados em membros tremulantes e amorfos, e os insetos levantavam vôo assustados, e o vento parecia soprar triste chorando entre o bambuzal. Durante alguns segundos eu tinha medo, muito medo de que os segredos que habitavam o fundo daquele lago se libertassem, aproveitando um momento de descuido da natureza.

Eu sentia um misto de temor e desejo de que o lago se desencantasse, e em alguns dias isto era quase iminente. Quando pesava no ar um misterioso prenúncio de alegria, eu me inquietava achando que o momento fosse se precipitar. Era evidente que bastava um simples desequilíbrio, um encontro fortuito, uma mínima borboleta que destoasse do tom de quase luto fechado do ambiente, e a mágica aconteceria. Primeiro, abrindo as densas folhagens e esparramando no espelho calmo e límpido do lago, o céu azul e a verde nudez da vegetação. Depois, soprando uma brisa suave que levava embora o mofo das paragens e tocava flautas pelo bambuzal, acordando pios, trinados, chilreios e assobios. Trazendo de volta uma ruidosa revoada de pássaros, que disputariam espaço com zumbidos e sussurros de milhares de insetos de asas delicadas e coloridas. E os raios de sol batendo no lago e se projetando em troncos antiqüíssimos, escondendo-se por entre as rugas de jequitibás, ingazeiros, ipês e jatobás. Desalojando trepadeiras, bromélias e orquídeas de todas as cores e formas. Pelo chão haveriam de se espalhar leguminosas, e samambaias chorariam pelos barrancos em meio a juncos, desalojando joaninhas, saúvas, grilos, minhocas e centopéias. Uma confusão de cores, um misturado de formas, um excesso de vida, um aumento exagerado de cheiros. E o lago, se já estivesse pronto, sairia de seu estado de contemplação. Bastava isto. Só isto: um breve encontro, um instante em que ele se visse refletido nas asas de uma borboleta.

Pois então, lembra do que te falei lá no início? Sobre a vida ir se acumulando inteirinha nas margens de um precipício, esperando a hora de acontecer? E sobre estar ainda hoje, aqui, com a mesma sensação que tive ao molhar pela primeira vez os pés no lago? E sobre como eu acho que de lá nunca os tirei? E das histórias antigas que fazem do viver uma constante preparação para a história derradeira? É porque eu sinto que é você e precisava te contar de mim.

Sim, hoje esta sou eu:

- Muito prazer, o lago!
Fonte: http://anamariagoncalves.blogspot.com/2006/02/confisso-26.html

Um comentário:

Jéssica Balbino disse...

"Estive quase toda a manhã pensando em como as coisas importantes que nos acontecem dependem apenas de um derradeiro segundo, nem mais nem menos. "

Engraçado que também passei minha manhã inteira assim ! Pensando ...
muito lindo o texto ...
bjão e quando puder, dá um chego no meu blog tbm: http://jessicabalbino.blogspot.com