Click - Elisa Lucinda
Lira tinha um namorado discreto e recente pra quem ligaria depois da palestra. Cientista, socióloga e pesquisadora das culturas das comunidades ditas primitivas, a brasileira Lira morava na Espanha e ligaria para o tal namoradinho que tinha conhecido num almoço em outra palestra. Ligaria depois do discurso, depois do decurso, depois do curso das coisas.
Click. Um fotógrafo no corredor da Universidade pesca o estilo dela. Vai olhando o linho bordado do colete, a seda fina do vestido pérola que lhe supunha as curvas, as botas, italianas com certeza. Olhos de esfinge tinha a Lira. O lince olhar dele invade seu movimento como um gesto, que é o que o olhar é. Ela percebe. Toma um café. Pega um cigarro na cigarrilha madrilena de prata, de cigana mesmo, e tenta quebrar sua impostada formalidade, pedindo a ele, justo a ele, o fogo.
— Eu vim pra te fotografar, Doutora Maria Lira. Não vim pra acender-lhe os cigarros, em todo caso...
— Obrigada, de qualquer modo. Não sou fotogênica, não fico a vontade diante de câmeras, diante de filmes. Considero mesmo um purgatório passar por eles. E tem mais, eu confesso, fico sempre nervosa antes de falar... Assim que terminar vou ligar pro meu namorado..., senhor...
— Romano. Meu nome é Romano. Romano Calô.
— Calau? É francês?
— Não.
— É do verbo calar, passado, calou?
— Talvez. A gente sempre vira passado. E Lira, vem de onde?
— Meu pai é poeta, músico, me deu esse nome. Os mestrados podaram muito meu pai. Lesaram sua música... sua lira.
— Não tenha o mesmo destino que a lira de seu pai, senhora.
Lira ouve seu nome ser anunciado. Pessoas muitas se dirigem ao auditório. Treme a Lira. Ela e toda sua partitura. Encarna a dama e vai. Lotado.
— Minha experiência com comunidades, tribos e suas crenças, artes, dialetos, tem mudado minha vida. E é por isso que sou cientista. Sou mais cientista na hora em que procuro do que na hora em que acho. Não o sou pelo que encontro, mas pela busca, pelo que procuro incessantemente. A cada dia venho aprendendo a lidar com preconceitos daninhos, mesquinhos, que eu pensava estarem há tempo absolvidos, resolvidos pela depuração que a intelectualidade deve provocar. Engano meu. As comunidades ditas primitivas encaram suas pulsações com... (Click). Lira sente na veia o click dele e se refaz na sutileza... Com respeito por si. Eu ia dizendo que o desejo, a criação e tudo o que é genuinamente da qualidade humana, é precisamente o Deus dessas organizações. (Click).
Só ela ouvia o click profundo de Romano como quem recebe um raio, uma seta. Sentia palpitações inoportunas no meio de si e da palestra. Embora houvesse jornalistas e diversas câmeras ali, só o click dele era o trovão, o vão, o infortúnio.
Click dela bebendo água e pausando a fala; click dela tentando acender o cigarro e desistindo em seguida; click dela engolindo com dificuldade a pouca saliva.
— Numa comunidade do norte da África, por exemplo, houve um momento em que achei errado, equivocado não comermos com as mãos. Todos comiam assim ali. Eu também comi. Achei tão confortável, tão direto, tão íntimo que comecei a achar subitamente falso, hipócrita o uso de talheres. Nós também somos caçadores. A diferença é que temos capangas e os mandamos matar, embalar e até temperar essa caça. Isso é o nosso almoço e tudo vira um civilizado crime de supermercados. Risos da platéia. Mas somos caçadores. E sórdidos. Comemos com garfos para ficarmos mais distantes do crime... bem não estou com isso dizendo que a partir de agora só devemos comer com a mão nossa presa. Engole a saliva e ele click. Aplausos.
Ela se sente meio tonta e senta-se um pouco. Revê anotações no roteiro e levanta outra vez ajeitando com elegância o vestido de seda marfim atrás, cuja costura havia ficado presa no vale das ancas. Click na mão dela.
— Vi uma inscrição linda numa tabuleta em uma floresta no Zaire: “Enquanto os leões não tiverem os seus próprios historiadores, a história continuará sendo uma versão dos caçadores”. Aplausos fortes e entusiasmados. Alguma pergunta? Click.
— Gosta de ser negra, linda senhora? da platéia, pergunta o fotógrafo.
— Obrigada pelo linda. “Adoro” essa e minha resposta, Romano.
— Romano?... Como sabe o meu nome?
— O senhor me disse agora mesmo no corredor.
— Só se for “O Senhor”, porque eu não lhe disse nada, comecei a trabalhar agora. (Click)
Risos discretos da platéia. Lira fica tensa, mas retoma ferina e elegante:
— Em algumas áreas do interior de Soweto, por exemplo, a fotografia é considerada um perigo, uma... como é que eu digo?... uma ladra de almas. Nessas tribos, nossa equipe não teve permissão de realizar qualquer registro fotográfico. Pode nos parecer uma perda lamentável como pesquisadores, mas pesquisar não pode significar invasão, intrometimento, desrespeito. Aplausos.
— Creio não existir critério de melhor ou pior quando o assunto é cultura; para isso precisaríamos cometer a insensatez de elegermos alguma, fatalmente em detrimento de uma outra. Não existe regra fixa ou predeterminada em se tratando da versão que cada grupo humano dá ao Universo. Universo: unir as versões.
Chuva de aplausos. Tem gente de pé. Click, click, click. Lira agradece e está totalmente mexida pelos takes que ele pega dela. Mas não podia pensar nisso: quando se está num palco tem-se que encostar num canto as emoções pessoais de modo que adormeçam. Mas no fundo ela sabe que essas emoções se filtram e acabam por se infiltrarem interferindo no ritmo, na temperatura, no tom do tema. Bebe mais água. Click.
Por que ele gosta tanto de me fotografar bebendo água? Click. Meu Deus, acho que eu devia ter vindo com o vestido verde, iria fotografar melhor, pensa.
Lira prossegue com bravura por mais um quarto de hora no debate. Autografa alguns livros, levanta-se e finaliza:
— Meu desejo é que vocês possam aprender como venho aprendendo a delicadeza necessária para se andar no mundo: cada casa, cada bairro, cada favela, cada palácio é um mundo; quanto mais delicado e simples e receptivo e generoso for o forasteiro, mais de casa ele se torna, mais de casa ele é. Gosto de voltar ao Brasil e estou emocionada por estar aqui. Em casa.
Lira se emociona. Aplausos esfuziantes, abraços. Click.
Começa o coquetel. Muita gente, eu não agüentava mais o olhar dele, sua teleobjetiva, seu carnaval, seu carrossel de misteriosas e óbvias intenções. Meu Deus, só me faltava essa. O pior é que não tenho a mínima vontade de ligar para o tal namorado novo... Meu Deus como Romano me olha!
O garçom veio trazer o champanhe e um bilhete: “Assim que chegar a hora da revelação, lhe enviarei o que consegui roubar de ti”.
Não consegui mais pegar o copo com naturalidade. Tremia muito e nunca fui de tremer. Tive vontade de pedir uma vodca, mas nessa hora um aluno me pede pra autografar um livro onde conto o que acabei de descrever na palestra; era um jovem entusiasta que falava muito e eu não o escuto, me limito a concordar enquanto tento ricochetear o olhar de Romano lá da outra mesa.
Bebi o champanhe com sede e ansiedade e fez um pouco de efeito. O suficiente para eu sentir o apertado das novas botas e resolver tirá-las sorrateíramente por debaixo da mesa. Toca uma salsa. Algumas meninas e meninos dançam descalços na pista. Também vou. Que calor. Descalça e moderna dancei meia hora, eu acho, sem parar. Fazia tempo.
Relaxei, mas perdi meu fotógrafo de vista. Melhor. Precisava telefonar. Calçando as botas, notei um papel dentro de um pé, quando voltei à mesa. Não é que era outro bilhete?
“Não vá embora, não telefone pra ele, não me deixe; não nos deixe como se fôssemos tribos menores, até porque, somos tribos menores. Quero estar no seu passo. Boteco 13, à esquerda dessa mesma rua, ao lado do auditório.”
Bebi o resto da bebida já meio quente e saí meio louca. “Doutora Lira...” Já volto, eu dizia entre os afoitos estudantes. Perturbada, mas decidida: nem o telefonema, nem essa loucura, vou é para o hotel. Chovia fino; tirei o colete, queria sentir a chuva, queria me acalmar. Na esquina, à esquerda, esperei um táxi. Um táxi que me salvasse. Táxi! Táxi! Ele parou. Eu sentia que estava na frente do tal boteco e que minhas costas davam direto no olhar dele. Sentia Romano me estudando o decote, sentia que seu olhar me queimava o dorso e entrava demoníaco em minha nuca. E o motorista: A senhora vai pra onde? Pra lugar nenhum. Respondi sem pensar.
— Mas como pra lugar nenhum? Tá me achando com cara de otário, ô meu? Quem vê uma mulher bem vestida assim, bom tecido, com jeito de estudada, não vai pensar que vai tratar a gente de palhaço... vai procurar um trabalho, vagabunda!
Fiquei pasma e ele tinha razão. Me aproximei da janela do carro:
— Desculpe, vim fazer uma palestra, não conheço bem a cidade, na hora que o senhor me perguntou...
— Ah, vai caçar um homem, vai! E acelerou.
Fiquei zonza, achei que estava todo mundo olhando e me dirigi sem saída ao bar. Romano havia pedido contreau. Sentei-me educada, mas sem pedir licença.
— Não costumo beber contreau. Eu disse bebendo logo um gole, nervosa.
— Mas adora.
— O que é que você quer comigo?
— Que você ligue urgentemente pra seu namorado.
— Pra quê?
— Pra que você não possa me enlouquecer de vez. Nem a voce.
— Que pretensioso! Com o seu estilo não corro o risco de enlouquecer, meu filho.
— Se é assim por que não se entendeu com o taxista?
— Meu problema com o táxi foi uma mera questão de mapa, de bússola.
— Sim. E o nosso problema, qual é?
Acabei ficando confusa. Quero mais um contreau. Ele pede e eu começo a falar de minha vinda ao Brasil; desembestei a ocupar o silêncio porque estava morrendo de medo daquela boca. Falei eloqüente e encadeada. Parecia uma corrente de frases. Um tufão. Ele olhava atento minha boca: seus movimentos, as engolidas de saliva que eu dava para me recuperar como um afogado armazenando ar. Eu me demorava nos assuntos que sempre funcionavam como “interessantíssimos”.
Mas o negro Romano veio se aproximando de mim estranhamente e pedindo e dizendo e gemendo um “Dá licença, deusa, dá licença, mulher”... Me beijou. Foi enfiando a rosa língua na minha boca que correspondia. Parecia que ele já me conhecia: meus tempos, meus mínimos intervalos, minhas exigências, minhas engrenagens. Lambia meus lábios e mordiscava cada um de vez em quando e aí voltava felino e nobre pra dentro da minha boca. Degustava minha língua. Visitava o palácio do palato e pronunciava lá dentro calores de palavras assim: — Quero você, te comer com a mão, minha livre presa, te comer com a mão... ai que tesão.
Daí, todo o meu repertório de respostas prontas virou apenas: Quero, quero, quero, quero... Ele dizia no meu ouvido: Você é uma rainha verdadeira, com reinado próprio, com estilo raro... Você é gostosa.
Beijei dessa vez vendo seus lábios marrons avermelhados como um abismo bom. Já estava era molhada demais. Vi seu pau por debaixo da mesa furando o surrado jeans. Eu estava de olhos muito abertos. Tinha sempre beijado de olhos fechados; quanta coisa perdi de ver, minha nossa! Passei a mão rápida no volume dele. Um volume de Deus! Ele enfiou dois de seus dedos em mim e eu esguichei. Um chuveiro de água no meu vestido e nos dedos dele. Seus dedos me tocavam e eu era um instrumento, um cello íntimo que soava gemidos afinados.
Veio a moça que nos servia incansáveis contreaus e senti que ela também umedecia o interior da costura de seu uniforme de tergal. Com seus dedos no meu dentro, Romano perguntava baixinho: — Quantas palestras dá... por ano, doutora? Eu dizia.., quarenta... cem... dez não sei...
— Não sabe contar, minha mestra? Conta pra mim, minha fêmea?
Eu gemia outra vez na partitura dos dedos dele. Jorrava farta.
— Que água é esta? Trouxe do deserto, santa? E me beijava. Eu cabia o pau dele na minha mão e não sabia mais meu nome. Diz meu nome, diz...
— Lira, Lira, Lira... Ele dizia e eu delirava.
— Vamos sair daqui, meu nêgo. Vamos prum hotel barato com estrela nenhuma.
- Não.
Romano me enfia outra vez os dedos para lambê-los em seguida. Com a segunda mão visita minha bunda, seus segredos e curvas. Morro.
— Vamos meu amor, pagar uma espelunca, onde a gente se misture, onde você me tenha toda. Eu quero.
— Não nêga, tenho outros laços. Entrar em você não vai ter volta. Há encontros que se bastam no desejo.
— Mas o desejo já é quase o ato, às vezes pior que o ato. No ponto que estamos o melhor é ir.
— Fique quieta. Vou te falar um poema que acabo de compor e você vai ficar quietinha, comportadinha no “plano americano”, promete?
E me enfiou de novo os dedos úmidos.
— Cheira a tribo a me chamar
gente estrela própria única star
meus dedos se enfiam na ciência
eu Colombo a conquistar a terra
que me endoideceu chafariz nos dedos
eu com medo
de abandonar a capitania certa que sou eu
ai a ciência louca a ciência danada
me chama para amar
não vou não dá.
Eu estava absolutàmente rendida.
— Por que faz isso comigo, de onde você vem bruxo, a que horas compôs esse poema?... como sabia que eu viria? O que quer de mim?
— Não sei. Há gente que se encontra tão sublime, tão completamente encontrada que essa gente sim, pode partir. Eu nunca agi assim, nunca mandei bilhetes nem na adolescência. Nosso encontro Lira, é desses abismais. Podem mover o mundo e movem, por isso sua dose deve ser mínima, eu acho.
— Eu te amo, faz uma hora que te amo, nunca amei tão rápido.
— Eu também. Imagine se a gente tiver mais prazo? O tempo de erupção do vulcão é que determina seu estrago...
— Vamos prum hotel agora, prum lugar onde não haja fotógrafos... uma pensão.
- Não.
E me beijou de novo fundo. Parei o beijo porque achei que se despedia.
— Lira, vamos aproveitar que não temos um ao outro, porque assim não corremos o risco de nos perder.
— É bonita a frase, mas quero você dentro de mim agora. Por que essa racionalidade? Quero ser sua... tem coisa mais simples do que isso?
— Escuta, Lira. Só te querer já ocupa todos os meus espaços. Não há lugar pra você morar em mim agora, porque seu lugar é vasto, seu lugar sou eu todo. Se eu deixar você entrar, vou ter que sair, entende?
Peguei na intimidade dele de novo e joguei minha bolsa sob a mesa. Fui pegá-la e o chupei como se fosse o peito de minha mãe, um picolé, um pirulito, uma lembrança. Fiquei ali protegida pelas longas cortinas que a toalha da mesa formava para nós. Ouvi sua voz para a garçonete:
— Minha querida, traga mais dois contreaus e verifique por mim se minha mulher está passando bem no toalete... está demorando.
E gemeu, ah... ahahah... a garçonete pergunta o que é, e ele responde que sente, às vezes, fortes pontadas no peito. Não será coração? Pergunta a suave moça. Ao que ele responde ofegante e definitivo: é coração.
Voltei do subterrâneo daquele paraíso como quem emerge do fundo do mar achando longe a superfície.
— Ah, meu príncipe, onde está minha compostura?... Enlouqueci!
— Sua compostura...? Vou procurá-la pra voce.
E sumiu ele, sem álibi, por debaixo da mesa. A garçonete traz o contreau e antes que ela falasse, avancei:
— Senhorita, por favor, viu meu homem ir ao toalete? Demorei e ele deve ter ido em minha procura.
— Vi, ela disse. Quero dizer, não sei, ele também perguntou pela senhora... ai, agora estou confusa...! É lindo o amor de vocês, né? Sora desculpe eu falar assim, mas tá todo mundo comentando lá na cozinha da belezura que e ver que o amor existe de verdade. Eu até falei que vou beber essa bebida amanhã com meu noivo. É bem minha folga, sabe?
— É, contreau é muito amoroso, eu disse meio atordoada com a língua dele no meio de mim, no meu negocinho, no centro exato de minha compostura. Sentia a renda da calcinha roçar meus tornozelos e não acreditava em absolutamente nada do que estava acontecendo. Gemia muda e minha alma parecia solta de mim. Desprendida, minha alma vagava na vadiaria do bar. A garçonete me assiste como quem vê uma novela no último capítulo.
— Sora desculpa perguntar, mas a sora não é a palestrante? Eu vi no jornal dos estudante seu retrato. Eis dão pra gente todo mês.
— Não, não sou. É minha irmã. Aaaai...!
Eu estava quase gozando.
— Por favor, peça a um colega seu pra entrar lá, veja por que meu marido demora tanto no toalete, estou preocupada porque ele sente muito o coração.
— Ai meu Deus, me entreti aqui, já vou... Sora desculpa, tá?
Ela foi. Debaixo da mesa era uma água só, do gozo dele e do meu. Ele murmurava de lá: — Chove minha deusa, chove mistério, tenho sede...
Eu escutava sua murmurância nítida como se escuta um ator murmurando lá da boca de cena e a gente na última fila como se lhe estivesse ao pé do ouvido.
Aaaaaah... gozei como quem morre e quis uivar no restaurante, na cidade, no mundo. Não pude. Meu restico de razão virou lágrima e explodi caindo a cabeça morta de pensamentos sobre a mesa. Romano retorna do oceano com o rosto encharcado de toda água do mundo. Sua roupa molhada de nosso infinito. Ele não disse mais nada com palavra de se falar com boca. Só beijo que come lágrima. Meu olhar dentro do dele já concordava: fomos feitos mesmo para partir. Partir é pra quem pode. Pra quem fica. Partir é pra quem permanece.
Algum de nós pagou a conta. Alguém dos dois levantou primeiro.
Romano leva Lira até o táxi como quem segue um andor. O bar fica atrás exalado de amor real. Os dois partem inteiros. Cada um com gosto, muito gosto de encontreau na boca. O rosto de Lira na transparência do vidro molhado da janela do carro.
Click.
LUCINDA, Elisa. “Click”. In: Contos de vista. São Paulo, SP: Global, 2004, pp. 112-125.